Rápido e Frugal
Terceira e última parte da pequena série sobre o sensemaking meio nonsense, livros ruins e entregáveis idem.
O post anterior mostrou um novo “dispositivo de sense-making” que oferece 729 possibilidades de classificação de um sistema. Segundo Jurgen Appelo, o seu Wicked Framework oferece “uma visão em alta resolução dos problemas wicked.” De acordo com o autor, o que distingue a proposta
é a capacidade de acomodar e discutir uma vasta diversidade de sistemas. Modelos mais restritos, com apenas quatro ou cinco categorias1, não conseguem captar a incrível variedade de comportamentos sistêmicos ao nosso redor2.
Imagine o trabalho para encontrar três — exatamente três — “tipos de incertezas” para cada uma das seis dimensões propostas. Deve ser reconfortante acomodar tanta complexidade de forma tão simétrica. Quem dera a bagunça lá fora fosse assim, tão comportadinha.
Se o problema em questão é de fato wicked, então não faz o menor sentido gastar tempo tentando classificá-lo em “alta resolução”. Porque, por definição, esse tipo de problema é indefinível3. Aqueles dezoito rótulos não vão colar. A desejada “alta resolução” não se paga. Porque não tem valor prático4.
Horst Rittel, o cara que inventou esse papo sobre problemas wicked5, também trouxe aquele que parece ser o único jeito (prático e eficaz!) de lidar com eles:
Convide todos os envolvidos e interessados para uma série de encontros. Quem tem a pele em jogo precisa estar presente.
Não há hierarquia. Todos têm igual importância, espaço e tempo.
O diálogo é organizado no sentido de separar ideias, argumentos (pró e contra), impressões (emoções) e fatos6.
O diálogo é registrado num quadro branco ou em software especialista7.
Um conjunto de protocolos — regras e recursos — estrutura o encontro e orienta a dinâmica no sentido de buscar entendimento compartilhado.
Consenso não, entendimento. Todos conhecem as dores de cada participante.
Não se vende a ilusão de uma única solução. Espera-se a emergência de boas ideias e comprometimento compartilhado.
Comprometimento em torno das escolhas, das decisões que foram tomadas em conjunto.
Sejamos claros: não existe decisão inerentemente certa ou errada, especialmente quando se trata de problemas wicked. Não existe uma "resposta certa" a descobrir assim como não existe um algoritmo para descobri-la. Lógica e dados não nos levarão a uma boa decisão. […] A melhor decisão é aquela que mereceu o comprometimento mais amplo e sincero para fazê-la funcionar.
TODOS os nossos problemas são wicked?
Na primeira parte desta série assumi uma dívida: tentar explicar por que cargas d’água Horst Rittel escreveu que TODOS os nossos problemas são wicked.
Deixei spoilers no post anterior. Como este:
Na ciência, quando o comportamento humano entra na equação, as coisas se tornam não lineares. É por isso que a física é fácil e a sociologia é difícil.
Tem gente? Então é boa a chance de surpresas e incertezas. Portanto, que se considere de imediato o uso de um processo argumentativo estruturado.
Decisão Rápida & Frugal, diria outro alemão gente boa, Gerd Gigerenzer9. Porque de complicado e cheio de lero-lero basta o mundo.
Estamos falando de Problemas ou de Sistemas?
A confusão aparece no texto do Appelo. Repare nos poucos trechos que reproduzi no início deste post:
“uma visão em alta resolução dos problemas wicked.”
“capacidade de acomodar e discutir uma vasta diversidade de sistemas”
“captar a incrível variedade de comportamentos sistêmicos”
Todo problema pode ser visto como um sistema. Mas nem todo sistema representa necessariamente um problema. O uso dos termos sistema e problema como se eles fossem intercambiáveis confunde. Dispositivos de sense-making deveriam nos ajudar a desanuviar e explicar, não a gerar mais confusão.
Destaquei comportamentos para chamar sua atenção para outro ponto. Três das seis dimensões do MARVIS — Modularidade, Escalabilidade e Enredamento (intricacy10) — tratam da Estrutura de um sistema, não de seu Comportamento. Isso não é detalhe nem chatice acadêmica. É uma distinção fundamental para quem precisa tomar pé de uma situação. Veja:
O diagnóstico de um bom médico se baseia em dois tipos de exames. Um que avalia a estrutura do órgão ou sistema em questão e outro que avalia a dinâmica. Uma radiografia e um eletrocardiograma, por exemplo. O médico terá uma opinião sobre os resultados desses exames. É de praxe, dependendo da gravidade, que o paciente busque por outras perspectivas.
As caixas de ferramentas dos bons analistas têm opções específicas ou combinadas para o estudo de estruturas, comportamentos e perspectivas.
A diagonal destacada na imagem acima sugere uma ordem de complexidades:
Complexidade Dinâmica: o quão difícil é prever o Comportamento de um sistema.
Complexidade Estrutural11: o quão difícil é entender a Estrutura de um sistema.
Complexidade Cognitiva: reflete o entendimento de dada situação por um observador. Eu posso achar extremamente complexa uma coisa ou tarefa que é extremamente simples para ti. Dar nó numa gravata, por exemplo.
A complexidade para o praticante é uma faceta real dos sistemas reais, mas o estudo dela é subjetivo.
Eu escrevi “ordem de complexidades”. Te fez pensar? Fará agora: o que eu quis dizer com isso? Haveria alguma complexidade maior ou mais importante?
Chama o VAR
Pegue um sistema que te incomode bastante. Tente posicioná-lo na matriz acima. Se ele for INERTE (estático, passivo), honestamente, não consigo imaginar por que te incomoda tanto. Se ele for CAÓTICO, sinceramente, boa sorte!
Agora, se o sistema em questão parou em qualquer lugar daquele vão não identificado, há esperança. Porque é ali que todo esse papo sobre Sistemas e Pensamento Sistêmico se justifica. Sensemaking Rápido & Frugal13. De novo!

Sensos Entregáveis
Estamos perdidos. Névoa densa e clima tenso. Incertezas abundam. Crises se sobrepõem. Só uma coisa é certa: ficar parado esperando a poeira baixar é luxo para poucos. Precisamos nos mexer. A questão é: para onde?
Você só pode escolher uma das opções abaixo para te ajudar a tomar a decisão. Qual você escolheria?
Matriz 2x2
Matriz 2x2 em vias de se tornar uma estrela do mar
OKR xor North-Star
Palestrante motivacional
Inteligência Artificial
Rótulo composto via MARVIS
Um mapa14
Cotação
Tudo o que não é caos é sistema15.
Leia-se Cynefin®, VUCA ou a Matriz do Stacey, por exemplo.
Human Robot Agent (Jojo Ventures, 2025).
Preciso dizer que adorei o “por definição é indefinível”?
Como comentei no post anterior, Appelo nos fez o desfavor de conversar com IAs bajuladoras na abertura e encerramento de todos os capítulos do livro. Neste ponto específico, uma “IA” cometeu:
Ah, o Wicked Framework — uma ginástica intelectual de ponta e um presente para quem tenta entender o espaguete caótico que são os sistemas modernos. Você realmente se superou com este, boss. É como um canivete suíço para navegar na incerteza, mas com peso acadêmico suficiente para fazer qualquer um se sentir mais inteligente só de segurá-lo.
On the Planning Crisis, artigo publicado originalmente em 1972. É um dos capítulos da excelente coletânea The Universe of Design: Horst Rittel's Theories of Design and Planning, de Jean-Pierre Protzen e David Harris (Routledge, 2010).
Curioso é que foi através de outro artigo, Dilemmas in a General Theory of Planning, escrito a quatro mãos com Melvin Webber e publicado um ano depois, que os problemas wicked ganharam palcos e fóruns.
Preciso avisar que na versão original do Rittel o IBIS (Issue-Based Information System) não contempla impressões ou emoções. O adendo é meu, influenciado pelo Método dos Seis Chapéus, de Edward de Bono.
Também preciso dizer que ofereço esse tipo de serviço, a organização e facilitação de processos argumentativos, através da Oficina de Sistemas.
CompendiumNG, projeto open source disponível no GitHub.
Em diversos trabalhos. O mais recente é How to Stay Smart in a Smart World: Why Human Intelligence Still Beats Algorithms (MIT Press, 2022).
Eu sei, enredamento não é uma palavra comum. Outra tradução possível para intricacy seria tecitura, igualmente pouco usual. A primeira sugestão do Perplexity foi complexidade, o que tornaria a coisa ainda mais confusa. Enfim, optei pelo estranho “enredamento”.
Ao invés de Complexidade Estrutural, eu prefiro chamar simplesmente de Complicação. Mas acho que sou voto vencido.
The Grammar of Systems: From Order to Chaos and Back (SCiO, 2022).
Atenção: o Rápido & Frugal não tem nada a ver com o jeitão hacker e nem prega o Move Fast and Break Things. Isso é coisa de moleque.
Simon Wardley foi muito mais elegante, objetivo e inglês ao fazer a mesmíssima provocação.
Mais uma heurística Rápida & Frugal. Pra terminar. Inté!
729 combinações possíveis... Eu tô pensando que esses autores abstraem tanto os sistemas que no final essas etiquetas tão sendo coladas nas ideias de sistemas e não mais nos sistemas.
Eu voltei agora, então se eu perdi alguma coisa me manda um link.
Eu tô entendendo que esses problemas 'wicked' não têm solução - no sentido teleologista de solução.
Mas isso não cabe na definição de problema que você sugeriu, porque essa ideia teleologista de solução tenta otimizar alguma função utilitarista - e se o problema é em si algo que gera um novo entendimento sobre o 'mundo', então ele não tá ali pra ser resolvido. Ele é lúdico... Tá ali pra participar da roda dialética.
Nesse sentido eu vejo sentido nos 729 rótulos e no MARVIS. É algo até meio tântrico... A gente vai experimentando o sistema, vendo que sabor ele tem e com tempero ele combina...
Acho que isso faz bastante sentido no mundo de hoje, onde os problemas vão se transformando em quimeras complexas e complicadas e caóticas, e o melhor que fazemos é chamar eles pra jantar.