Os três náufragos tinham meio andar só para eles. Lá do outro lado, no cantinho e em silêncio, restavam seis gerentes de contas e um gerente de gerentes de contas. Nenhum telefone tocava. Era a primeira sexta-feira sem notícias de cortes, desmembramentos ou fusões de departamentos. O pior já passou, pensaram. Sem um chefe nomeado, cliente chateado ou qualquer tipo de compromisso agendado, nossos três amigos resolveram fazer alguma coisa - “justificar o salário”, cutucou Caju. “Vamos descobrir o nosso oceano azul!”, convocou Jucá.
Se na época os caras tivessem um Mapa Wardley1, eles teriam rabiscado a mesma área: “Se temos alguma chance, é aqui.”
Caju era especialista em servidores e armazenamento. Jucá era o cara quando o assunto era Internet, redes e segurança. O dito Cujo era o generalista-holístico que estava ali porque não tinha lugar menos pior. O trio, formado há três semanas, já estava entrosado.
Os caras empacotaram tudo o que aparece na metade inferior do mapa em um único serviço. Hoje isso parece um tanto óbvio e trivial. Naquela época, ninguém tinha sonhado uma infra as a service. Software como serviço (SaaS), para você ter uma ideia, ainda engatinhava e ludibriava: a mudança se dava apenas no modelo de contratação — aluguel e não mais licença de uso.
Infra como serviço! Ninguém vende isso, diziam. Baita oceano azul, vibraram. E começaram a desenhar pacotes para tudo quanto é tipo de público. Versões para pequenas e médias empresas; condomínios de empresas; condomínios residenciais! Tinha até uma versão que entregava até dois analistas de suporte. Uma beleza! “Um todo bem maior do que a soma das partes”, concluiu o dito Cujo.
A Acme Gamma, como sabemos, só vendia ferros e caixinhas. Raramente conseguia uma margem próxima dos 8%. Os três náufragos desenharam pacotes que poderiam dar mais de 25% de lucro. Entregando os mesmos ferros e caixinhas! Entregando não, alugando!
Desenhada a plataforma, foi difícil conter a ansiedade. Era hora de levar a boa ideia hierarquia acima.
Os três náufragos eram oriundos de diferentes unidades operacionais (círculos acima). Quando o desmonte desastrado passou, eles se acharam perdidos dentro da organização. Haveria alguém ali no Sistema 3, o Zé, caso eles quisessem tirar alguma dúvida. Alguma?!?
O tempo livre converteu nossos três amigos num verdadeiro Sistema 4. Eles fizeram pesquisas de mercado; Sondaram eventuais parceiros; Elaboraram cálculos, projeções e um belo powerpoint. Não havia mais um aqui e agora. Mas nada os impedia de olhar para o lá fora, amanhã. “Quem sabe a gente ganha a nossa própria unidade operacional?”. Enquanto esperavam, nomes, logomarcas, slogans e bônus generosos eram jogados em sessões de brainstorming cada vez mais alegres.
Uma semana. Duas semanas. Gente, quando é que nós vamos apresentar a nossa ideia para a alta gestão? Perguntemos ao Zé.
O Zé era da velha guarda. O Zé não passava um dia sem falar com representantes dos dois maridos (os dois bancos que colocaram bela grana na Acme Gamma, caso você esteja meio perdido nesse novelo). O Zé não só sobreviveu à sangria desatada como descolou um belo lugar ali naquele núcleo mal desenhado que misturava os Sistemas 3, 4 e 5. O Zé sabia das coisas. O Zé não queria saber de novidades. O Zé nunca quis saber da ideia dos náufragos.
Mais tarde no boteco
Só faltou a música triste soprada num trompete. Ah, vai a m…
Hehe, fim de filme cabeça europeu?
Dos bem fajutos, diga-se. Como é que um personagem chave aparece aos 45’ do segundo tempo e muda toda a trama!
Parece o Romarinho em 2012…
Não começa, não começa…
Pô gente, desencana. A história é boa. Antiga, cheia de furos, mas é boa.
Bah! Só faltou terminar com um negrito ali: Moral da História…
Moral da História: o novo morre de fome no velho!
Opa, eu li isso em algum lugar.
Beer, claro.
Claro. Ô chefia, manda mais duas! E outra porção de provolone.
Ele leu aquela moral da história em algum Beer. Presta atenção!
Tô prestando.
Tô vendo.
Moral da história: A medida da inteligência é a habilidade de mudar!
Isso é Einstein.
Claro que é. E a medida da inteligência em uma organização é aferida em seu Sistema 4!
Boa, voltamos ao VSM. Mas a história só trata do Quatro?
Claro que não. Olha a zona que fizeram no Sistema 1. Desestruturam todas as operações!
De tal forma que até deixaram a Acme Beta menos feia na foto.
Mesmo tendo aquele diagrama impressionista?
Mesmo assim.
Vocês não entenderam. Foi estratégia pós-moderna do sujeito sem gravata. Ele antecipou o movimento de desnetworkização que vem por aí…
Des o quê?
Desnetworkização. Corta todos os laços. Aposenta todas as interfaces. Acende as luzes e vê no que vai dar.
Céus!
Eu curti. De onde você tirou isso?
Sei lá, mas eu não inventei não… vem por aí.
E o que mais vem por aí? Digo, em nosso estudo de Cibernética Organizacional?
Deus sabe…
Acho que deveria dar um tempo para os causos, para as Acmes…
Tá no hora de comparar o VSM com o que tem por aí.
Com canvases!
Não vejo a hora.
Eu não vejo a hora de colocar alguma coisinha dessas em prática.
O que te impede?
Sei lá. E isso me impede, entende?
Nunca. Eu nunca te entendo.
Esquenta não. Até hoje tem um monte de gente que não entende o Beer.
Por falar nisso…
Cotação
Era como se Deus tivesse resolvido pôr à prova toda a sua capacidade de assombro, e mantivesse os habitantes de Macondo num permanente vaivém entre o alvoroço e o desencanto, a dúvida e a revelação, até o extremo de ninguém conseguir saber ao certo onde estavam os limites da realidade.
Wardley Maps, de Simon Wardley (Independente, 2022).
Cem Anos de Solidão, (Record, 2018).