O Sistema 3 cuida das coisas e eventos do dia a dia. Ele é mais do que necessário. Mas não é suficiente. Porque nenhuma organização é viável quando não se ocupa com o que vem por aí. Esta é a principal função do Sistema 4: preparar a organização para o futuro.
Futuro não é destino. Futuro é o que será construído.
É do primeiro capítulo do livro que apresentou o VSM2 pela primeira vez o seguinte gráfico:
Hoje é t₁. É onde o Sistema 1 — devidamente amparado pelos Sistemas 2, 3 e 3* — trabalha. O momento incerto em que uma tecnologia emergente (B) ultrapassa a tecnologia em uso (A) aparece em t₂. A distância entre hoje e o hipotético amanhã forma uma área de decisão crítica. Porque a empresa precisa, como ensina o dito popular, manter um olho no peixe e outro no gato. Por óbvio que pareça, esse trabalho não é tão comum em nossas organizações, sejam elas públicas ou privadas. Em tempos de mudanças em ritmo cada vez mais acelerado, essa desatenção pode custar a vida de uma empresa. Exemplos não faltam: Kodak, Xerox, Blackberry, Abril, Livraria Cultura… Tesla?
Outra coisa que não falta é gente ensinando como será o amanhã. Não temos tempo para um inventário completo dos resultados dessas adivinhações. Por isso me limitarei à uma curiosidade e uma ideia que, aparentemente, não vingou.
A curiosidade é minha. Há tempo tento achar alguém ou algum trabalho que me explique que fim levou a seguinte iniciativa: a Promon Engenharia3, famoso grupo nacional, divulgou um experimento. Cada área chave da empresa teria dois gerentes, um para cuidar do hoje e outro do amanhã. Entenderam minha curiosidade? Eles colocaram um Sistema 3 e um Sistema 4 em cada departamento. Se alguém tiver alguma notícia ou pista sobre como terminou essa história, se é que ela terminou, por favor compartilhe.
A ideia que não vingou foi apresentada como Dual Transformation4. Não vingou, muito provavelmente, porque não tinha um canvas pra chamar de seu. É uma pena. Porque os autores não reinventaram a roda. Pegaram carona na teoria JTBD (Jobs to be Done)5 — que já estava consolidada bem antes de ganhar um canvas6 — e a esticaram:
Através da transformação A nós reinventamos o hoje. A transformação A é o que um bom sistema operacional do VSM faz todo dia: Cria e distribui valor; recebe informações e algum trocado; faz do fidbeque um aprendizado; e, quando preciso, muda a forma de trabalhar. O eixo x, a forma de trabalhar, não trata apenas de processos e métodos. Políticas e estratégia de preços também estão ali. Em suma, a transformação A não é nada além do que uma execução plena, perene e honesta daquilo que normalmente chamamos de melhoria contínua7.
Nós criamos o amanhã quando somos bem sucedidos na transformação B. Ela muda o que fazemos e como fazemos. Um dos exemplos mais corriqueiros desse tipo de transformação é a AWS (Amazon Web Services). O que nasceu como um varejão virtual de livros virou, da noite para o dia, um fornecedor de tecnologia de ponta em nuvens. Se por acaso ou não, acho que nem o Bezos sabe mais.
Crítica, a transformação B requer um novo componente em nossas organizações. Ela pede por um Sistema 4.
É um bom exercício a tentativa de identificação do Sistema 4 em nossas organizações. Vira e mexe a gente não encontra nada! São empresas que compartilham a estratégia deixa a vida me levar, vida leva eu8. Por outro lado, quando bem sucedidos, achamos de tudo:
Tradicionais departamentos de P&D;
Caixinhas de sugestões;
Caixinhas de sugestões com sorteio de prêmios;
Enquetes e pesquisas com ou sem sorteio de prêmios;
Trabalhadores que ganham um dia por semana para trabalhar no que der na telha9;
Plataformas de co-criação que conseguem mobilizar até 400 mil solucionadores espalhados em mais de mil domínios técnicos10.
É claro que não há um formato único nem receitinha de bolo. Assim como deveria ser claro que o ecletismo da lista acima tem sentido irônico. O que ainda não é óbvia, para muita gente, é a necessidade do Sistema 4. De um robusto e variado Sistema 4. Que para ser eficaz precisa entender e representar todos os elementos operacionais do Sistema 1. Ele precisa da visão sinóptica do Sistema 3. Com uma diferença: sua luneta ou telescópio está apontando para o amanhã lá fora. E está, como ilustra o rabisco acima, interagindo diretamente com o ambiente.
O número de patentes é um bom indicador da eficácia do Sistema 4 de empresas e países. Recursões abaixo, o percentual de spikes11 e PoCs no backlog de um produto ajuda a identificar um time dotado de um bom Sistema 4.
Inovações acontecem principalmente na base da tentativa e erro, a versão humana da seleção natural.
-Matt Ridley12
Erros, cagadas e fracassos são inevitáveis. Se eles não contarem com um espaço reservado para acontecer, acabarão estourando na frente dos clientes. Tem firma que faz isso todo dia. Levando a vida; Sobrevivendo e, que desgraça, não aprendendo.
Cotação
Nós não podemos usar os métodos da Natureza, mas podemos (acredito que devemos) usar as soluções da Natureza.
Em coluna publicada no jornal Folha de São Paulo em 03/04/2016.
Brain of the Firm, de Stafford Beer (Allen Lane, 1972). Este trabalho seminal de Stafford Beer ganhou uma edição brasileira em 1979: Cibernética na Administração, pela Ibasa.
Fico à vontade para fazer a citação porque nunca tive nenhum tipo de relacionamento com o grupo Promon. O que divulgo saiu na imprensa. Não cito o veículo por falha fatal no segundo cérebro. Perdão. (Acho que saiu na Exame).
Dual Transformation: How to Reposition Today's Business While Creating the Future, de Scott Anthony, Clark Gilbert, and Mark Johnson (Harvard Business Review Press, 2017).
Uma ideia que tem mais de um pai, mas que se tornou conhecida graças ao trabalho de Clayton Christensen, particularmente no livro O Dilema da Inovação (M.Books, 2011). Para uma visão mais completa e atualizada do JTBD, recomendo Muito Além da Sorte: Processos Inovadores para Entender o que os Clientes Querem, também de Christensen (Bookman, 2017).
Nada contra nenhum canvas, por favor. Afinal, são apenas ferramentas. O problema é com a patota que ganhou um martelo e há tempo só vê prego pela frente.
Existem gotas (kaizen) e baldes (kaikaku) de melhoria contínua, de transformação A segundo o pensamento Lean. Ainda que muito diferentes no porte e no potencial de impacto, ambas as mudanças afetam apenas o como a organização trabalha. Se mexer no que a organização faz, vira kakushin. Essas definições raramente acontecem sem alguma controvérsia. Adotei o entendimento mais comum, acho eu.
Sem licença nem royalties para o Zeca Pagodinho.
Uma versão simpática do Sistema 4 que seria utilizada pela Alphabet/Google. Há dúvidas, controvérsias e versões tropicalizadas. Por exemplo:
Lucro: dedique 70% dos seus recursos naquilo que está garantindo o leitinho das crianças.
Troco: 20% dos recursos vão para experimentações mil. Aqui devemos ser ágeis e enxutos de verdade. Laços curtos de fidbeque e a noção de que tudo é aprendizagem.
Truco: reserve 10% para as boas apostas. São os experimentos que já passaram da fase do troco. Mas seguem com altas taxas de risco e adrenalina.
Esses são os assombrosos números da Haier Open Partnership Ecosystem (HOPE), plataforma mantida pela chinesa Haier. Caso documentado em Humanocracia: criando organizações tão incríveis quanto as pessoas que as formam, de Gary Hamel e Michele Zanini (Alta Books, 2021).
Apesar de outros significados, um spike é um experimento que não tem garantia de sucesso. PoCs (provas de conceito) têm sentido e utilidade semelhantes: É o time aprendendo e formalizando isso como uma dívida (backlog).
How Innovation Works: And Why It Flourishes in Freedom (Harper, 2020).
Essays on Life Itself (Columbia University Press, 1999).