Stafford Beer se encontrou pouquíssimas vezes com Salvador Allende, o presidente do Chile que bancou o primeiro projeto em escala nacional do VSM1. Um dos encontros, narrado por Beer2, tratou da apresentação do Modelo do Sistema Viável. Allende era médico, culto, curioso e atento. Ouviu pacientemente a explanação de Beer sem praticamente nenhuma interrupção. Até que chegou a vez do Sistema 5, que provocou um sorriso e a exclamação:
'¡Por fin... el Pueblo!'
O Sistema 5 encerra um sistema viável garantindo juízo e sentido. Acabei de chegar, sei lá como, nestas palavras — juízo e sentido — e acho que não poderia ter feito escolha mais feliz viável.
Juízo
O rabisco mostra duas alças saindo do Sistema 5 para monitorar as interações entre os Sistemas 3 e 4. É hora de dar a devida atenção para este ponto crítico de toda e qualquer organização: a concorrência3 entre o hoje e o amanhã.
Mesmo nas empresas do tipo deixa-a-vida-me-levar há um pouquinho de Sistema 4. Pode ser até o CEO durante o banho matinal, provocou Beer4. Nesses casos não há concorrência. Todos os recursos são direcionados para a operação, para o Sistema 3.
Organizações mais abelhudas — mais curiosas em relação ao lá fora, amanhã — têm um Sistema 4, ainda que nem saibam disso: a parte do marketing que faz pesquisas de mercado; o cara do financeiro que estuda e faz projeções sobre a economia; o pessoal de P&D; a turma de TI que tem o privilégio de testar novas tecnologias. Enfim, uma empresa pode ter muita gente bisbilhotando o futuro. O problema é que esses times mal se conhecem e não são estimulados a interagir. Eles não sabem que fazem parte de um mesmo sistema. E não raro se esquecem que tem um Sistema 1-2-3 pagando a conta.
É difícil imaginar os Sistemas 3 e 4 negociando recursos em perfeita harmonia5. É por isso que precisamos do juízo propiciado pelo Sistema 5. Ele tem o Voto de Minerva. Aliás, e isso é mais que um parêntese, é tentador pensar que temos um executivo (Sistemas 3,2,1), um legislativo (Sistema 4) e um judiciário (Sistema 5). Mas parece que todo mundo que escreve sobre o VSM evita essa analogia. Não sem razão. Legislativo, aqui ou alhures, um Sistema 4? Nem sonhando…
Sentido
Cultura, missão, visão e valores. Acho que não usei nenhuma dessas palavras até aqui. Não só porque elas são muito mal empregadas. Acontece que elas praticamente não existem no léxico do VSM. O que não impedirá um rápido e ácido de-para.
Comecemos pelo propósito. A citação mais popular de Beer é sobre ele:
The purpose of a system is what it does (POSIWID)
O propósito de um sistema é o que ele faz.
O mundaréu de gente lá fora, no ambiente, forma opinião sobre o propósito de uma organização a cada interação com ela. O propósito, assim como a beleza, está nos olhos de quem vê. Por isso são hilárias e trágicas aquelas intermináveis reuniões que visam definir a missão e a visão de uma empresa, divisão ou time. Se pelos menos os participantes entendessem que missão é meio e visão é fim, já ajudaria um pouquinho. Mas leia as tais declarações por aí. Esprema-as. O que sobra? Essa sobra bate com o que o cliente, parceiro ou funcionário percebe?
Organizações são a nossa primeira Inteligência Artificial6. Precisamos inventá-las para realizar aquilo que seria muito difícil ou impossível de fazer sozinhos. Por isso soa como um sinal de alerta a dificuldade em explicar o que uma organização faz. Um sinal ainda mais grave quando se trata de um negócio novo.
O Sistema 5 defende e reforça a identidade e o propósito de uma organização. Alguns autores o tratam como gestão normativa, política etc. Outros gostam de apontá-lo como garantidor da estratégia ou algo assim. Quero crer que Allende foi mais ousado e criativo no seu entendimento.
Acabou de Começar
Encerro aqui a primeira iteração do tema-desafio Cibernética Organizacional. Foi uma oportunidade de revisitar conceitos, livros e rabiscos. Pode funcionar também para apresentar um vocabulário básico que facilite futuras conversas.
O próximo giro deve analisar casos reais sob a ótica do VSM. É, creio eu, uma das melhores maneiras de provar o valor do modelo. Veremos.
Cotação
Todo conhecer é fazer. E todo fazer é conhecer.
Uma história que está bem documentada, mas clama por uma versão cinematográfica. Enquanto ela não chega, e além do tópico 2 abaixo, vale a pena explorar:
Cybernetic Revolutionaries: Technology and Politics in Allende's Chile, de Eden Medina (MIT Press, 2014)
Encontros na América do Sol: A Era dos Grandes Projetos Nacionais, de Carlos Eduardo de Senna Figueiredo (antares, 1983).
The Socialist Origins of Big Data, artigo de Evgeny Morozov publicado na New Yorker em 6/10/2014. Sem maiores explicações, o artigo foi renomeado para The Planning Machine. Por que será? Link recuperado em 20/03/2024.
Em diversas ocasiões, mas com especial nível de detalhes na segunda edição de Brain of the Firm, publicada pela Wiley em 1981.
Concorrência não é conflito porque as partes buscam o mesmo fim. Já conversamos sobre isso, lembra-se?
The Heart of Enterprise (Wiley, 1979), P. 231
Mas vale a pena ver como essa relação pode ser diferente. No artigo anterior já citei a Haier, empresa chinesa que mantém uma verdadeira economia de mercado em seu interior. Pois é, diferença pouca é bobagem. Aos curiosos:
The End of Bureaucracy, artigo de Gary Hamel e Michele Zanini publicado na Harvard Business Review em Nov/2018. https://hbr.org/2018/11/the-end-of-bureaucracy - link recuperado em 22/03/2024.
Humanocracia: criando organizações tão incríveis quanto as pessoas que as formam, de Gary Hamel e Michele Zanini (Alta Books, 2021).
Escrevi sobre o Rendanheyi, o modelo Haier, há quase 5 anos, em 25/03/2019.
Sacada legal de Mustafa Suleyman e Michael Bhaskar em A Próxima Onda e o maior dilema do Século XXI (Record, 2023).