A vida dos practitioners sistêmicos seria bem mais fácil se contasse com um vocabulário e uma gramática comuns. Apesar da idade da disciplina — oitenta e poucos anos para uns, milênios para outros1 — e de nobres tentativas2, ainda não temos uma linguagem sistêmica. A falta desse acordo — a ausência de denominadores comuns — explica aquelas bagunças ligeiramente malhadas no post anterior.
Eu arrisquei uma classificação: Emergência, Ambiente, Comportamento, Estrutura, História e Perspectivas. É uma entre incontáveis possibilidades:
Bunge3: Composição, Ambiente, Estrutura e Mecanismo.
Meadows4: Elementos, Interconexões, Função/Propósito, Comportamento.
Williams5: Inter-relacionamentos, Fronteiras, Perspectivas.
Cabrera6: Distinções, Sistema, Relacionamentos, Perspectivas.
Wilson7: Função, Mecanismo, Desenvolvimento, História.
Eoyang8: Containers, Differences, Exchanges.
Se eu pegasse outros seis autores, conseguiria seis sugestões distintas. Todas estariam erradas. Como estão erradas as propostas acima. Importante é entender que algumas são mais ou menos úteis em determinado contexto.
Qual é o nosso contexto? Estamos paquerando esse jeito de pensar. Pra quê? Como sugeri lá atrás, para Pensar Diferente. Como? Seguindo a sugestão de Bucky Fuller, usando ferramentas para experimentar e desenvolver uma nova forma de pensar. Quais ferramentas?
Emergência
Como escreveu Patrick Hoverstadt9,
Emergência não é apenas um ponto no Pensamento Sistêmico, é O Ponto.
Por isso chama muito a atenção o fato d’as emergências serem muito mal tratadas e mal representadas nas mais diversas metodologias sistêmicas.
O que emerge é o problema que precisamos solucionar ou a oportunidade que não queremos perder. O que emerge é o propósito ou um tanto de atributos que mal tratamos ao chamá-los de não-funcionais (sic)10.
A SSM (Soft Systems Methodology) trata bem as emergências e sua Rich Picture, modernamente solta e desestruturada, é a ferramenta que apoia bem os primeiros passos em uma abordagem sistêmica.
Ambiente
Aquilo que emerge precisa emergir em algum lugar - em um ambiente. Nas primeiras iterações, o mais importante é a correta identificação das partes envolvidas. Um bom mapa de stakeholders — um que identifique as partes e seus interesses — é item essencial em nossa caixa de ferramentas. Interessante notar que tal mapeamento pode ocorrer dentro da Rich Picture.
Quando tratamos do ambiente estamos obrigatoriamente falando de fronteiras e distinções. Faço esse adendo apenas para relacionar esta caixinha com outros termos que apareceram na lista acima.
Comportamento
Existem duas ferramentas clássicas para a representação da dinâmica de um sistema: Diagramas Causais (Causal Loop Diagram) e Diagramas Estoque-Fluxo (Dinâmica de Sistemas).
São as duas ferramentas mais populares em nossa caixa. É uma pena que tal popularidade tenha feito muita gente boa pensar que o Pensamento Sistêmico olha só isto: o comportamento.
Estrutura
Só o argentino Bunge arriscou o termo estrutura. Elementos, interconexões, inter-relacionamentos e relacionamentos aparecem como alternativas (integrais ou parciais) na lista acima. Estrutura mostra as partes e suas relações. Portanto, até o bom e velho Modelo Entidade-Relacionamento pode nos atender em determinadas situações11. Assim como os promissores Grafos de Conhecimento (Knowledge Graphs).
No entanto, se estamos estudando organizações (públicas ou privadas, enormes ou pititinhas, formais ou não) é mais adequado usar um modelo que tenha sido criado especificamente para representá-las. Se você aparece de vez em quando neste finito, já sabe que a principal utilidade de um organograma é revelar culpados. Se sua presença por aqui é constante (obrigado!) então já deve ter intuído que é neste lugar de nossa caixa de ferramentas que aparece o querido VSM (Modelo do Sistema Viável).
História
É curioso que de todas as propostas listadas acima apenas uma, a que não se apresenta como sistêmica — o Darwin Toolkit, contempla a história. Curioso porque é impossível estudar (investigar, analisar, diagnosticar etc.) um sistema sem tocar em sua história. Ainda que você esteja desenhando um sistema totalmente novo, o ambiente onde ele deve existir tem história. Ignore-a por sua conta e risco.
Não há uma ferramenta específica para capturar a história de um sistema. Diagramas Causais ou Estoque-Fluxo podem contemplar séries de dados históricos. Mas isso nunca conta toda a história. Por isso costumo fazer o seguinte: divido o quadro em três partes, passado, presente e futuro. Deixo 50% do espaço para o presente. Esse canvas (hehe!) acomoda e enriquece (!) Rich Pictures, diagramas causais e outras ferramentas de nossa caixa.
Perspectivas
Nada do que foi visto acima fará sentido nem será sistêmico se registrar um único ponto de vista. Pensar em Sistemas é aprender coletivamente. Se existem formas diferentes de interpretar uma mesma situação, todas precisam ser capturadas e estudadas. Isso vale para qualquer ferramenta em qualquer momento do estudo.
Finalmentes
As sugestões malhadas no post anterior mostram que a listinha acima está longe, muito longe de ser conclusiva ou final. Minha intenção, como perceberam bem no último papo no boteco, era posicionar o VSM numa básica Caixa de Ferramentas Sistêmicas. Agora, devo confessar que eu não sei por que achei que isso seria importante. Foi?
Férias
Tenho dois aniversários para comemorar em Maio: de vida profissional (38 anos) e do finito (20 anos!). O primeiro vai justificar uma semana de ausência12. O segundo deve motivar maior presença e algumas experiências.
Cotação
As metodologias e as melhores práticas não podem conhecer o contexto e a história da organização que as adota. Talvez elas não precisem se o ambiente for previsível. Mas isso é cada vez mais raro. O que traz outro fenômeno interessante: quanto menos previsível é o mundo, maior a procura por novas e melhores formas de lidar com novos problemas e menor será o tempo para produzir metodologias e práticas. Como resultado, as metodologias e as melhores práticas se adaptam e proliferam. Elas vêm com um marketing melhor e com mais autoridade num mundo em que são cada vez menos aplicáveis, um mundo em que o que aconteceu não pode prepará-lo para o que virá. O pior é quando as pessoas se escondem atrás da autoridade das melhores práticas ou dos seus proponentes. As melhores práticas criam o hábito de procurar primeiro por melhores práticas, em vez de pensar primeiro.
Uns gostam de sincronizar a origem do Pensamento Sistêmico com o nascimento das duas disciplinas que lhe deram a forma atual: a Teoria da Informação e a Cibernética. Outros gostam de apontar para o extremo oriente ou para a Grécia antiga e afirmar que o Pensar em Sistemas é tão velho quanto andar para frente. Como dedicado practitioner, fico com ambos.
As duas mais recentes e dignas de nota são:
The Grammar of Systems: From Order to Chaos and Back, de Patrick Hoverstadt (SCiO, 2022); e
Critical Systems Thinking and the Management of Complexity, de Michael C. Jackson (Wiley, 2019). Aqui não temos uma proposta de gramática mas a história da disciplina narrada de forma crítica. As diversas propostas e metodologias são classificadas e comparadas. Como Hoverstadt evitou isso a todo custo, os dois livros se completam.
Dicionário de Filosofia, de Mario Bunge (Perspectiva, 2019).
Pensando em Sistemas, de Donella Meadows (Sextante, 2022).
Systems Concepts in Action, de Bob Williams e Richard Hummelbrunner (Stanford University Press, 2010).
Systems Thinking made Simple, de Derek e Laura Cabrera (Odyssean, 2015).
This View of Life, de David Sloan Wilson (Vintage, 2020). Wilson apresenta o Darwin Toolkit que é formado por quatro questões: Função, Mecanismo, Desenvolvimento e História. A proposta é baseada no trabalho do biólogo holandês Nikolaas Tinbergen.
O Modelo CDE (Containers, Differences, Exchanges) foi sugerido por Glenda Eoyang. Me baseei na forma como ele foi apresentado por Williams (citado acima).
Na gramática citada no tópico 2 acima.
Imagine um engenheiro chamando a velocidade máxima do carro que ele está desenhando de “requisito não-funcional”. Só a patota de TI comete essas barbeiragens. Que tal começar a chamar esses requisitos de Emergências? Pior não fica.
Desde que você não precise alocar um DBA para desenhar o modelo, pfv.
Mentira: preciso de tempo para trabalhar em outro(s) projeto(s).