É o sonho de 9 em cada 10 empresas de TI: arrumar um marido rico. A Acme Gamma, tal qual a Dona Flor, conseguiu logo dois. E viveram felizes para sempre? Longe disso.
A Acme Gamma era uma colcha formada por 4 ou 5 retalhos. Ela só se percebia como um corpo único na festinha de final de ano. Cada um dos retalhos era uma unidade operacional com boa autonomia. Cada uma tinha seu próprio diretor e equipe de vendas, por exemplo. O acoplamento fraco entre as unidades e um meta-sistema pouco intrusivo proporcionavam invejável agilidade. Só uma unidade, a Feia, não parecia viável. As outras davam pouca amolação e algum lucro.
Apesar desse histórico, os dois maridos — dois grandes bancos — diziam que havia muito o que melhorar: “Diversas oportunidades de sinergia”. Porque “tinha muita sobreposição de responsabilidades, redundâncias mil”. Segue a ladainha: “Custo é igual unha”; “Custo é igual mato”; “Custo é igual bola de neve”. Os caras têm uma coleção quase infinita de metáforas para justificar a centralidade do controle obsessivo-compulsivo de custos.
A opinião dos maridos não foi acatada de imediato. Eles não tinham expertise. Uma consultoria foi contratada para meter a colher. Terceiro chique, renomado, desses que pagam para aparecer em matérias de revistas de negócios. Consultoria chique, antenada, dessas que carregam na ponta da língua a última tendência em termos de management, disrupção, geração de valor e canja de galinha detox.
O líder da consultoria — aquele que tem o privilégio de não usar gravatas — era chato chato chato chato de dar dó. E tinha uma agenda mais concorrida que a do Papa. Contabilizam apenas duas aparições do sujeito naquele projeto. Em ambas, além da ausência da gravata, outro item chamou a atenção, o livro que o cara carregava no sovaco: A Estratégia do Oceano Azul1. Os Rolando Leros captaram a mensagem.
Ferros e Caixinhas
Nada melhor do que um Mapa Wardley2 para mostrar a carteira de produtos e soluções — ferros e caixinhas — da Acme Gamma naquele momento:
O básico que você precisa entender do mapa acima é o seguinte:
Quanto mais para baixo, mais distante e invisível para o freguês; e
Quanto mais à direita, menores as margens de lucro e as chances de um oceano azul.
Todas as ofertas da Acme Gamma aparecem no quadrante detestável do Wardley. Só a unidade Feia não zanzava por ali. Porque ela já estava fora do escopo. Os dois maridos decidiram, sem encontrar resistência, que a Feia seria fechada: “Quem gosta de negócios de altíssimo risco é trader aventureiro”.
O cara sem gravata e nem Wardley — o mapa ainda não existia na época — se encarregou de dar a triste notícia aos dois maridos: “vocês mergulharam de cabeça num oceano muuuuuuito vermelho”.
A saia justa não circulou pela rádio peão porque a programação já estava tomada pelas notícias de cortes e desligamentos. O facão era semanal, o que levou a turma a debater se se tratava de sadismo ou burrice. O fato é que tudo parou por sete semanas e meia. Foram sete semanas e meia de amor e entrevistas de desligamento.
Abstrações e Serviços
Depois da tempestade veio uma calmaria desajeitada. Três náufragos, um de cada unidade operacional, passaram a se encontrar com certa frequência. Começaram trocando lamúrias; Logo trocavam ideias. Três dias depois, decidiram que era hora de tocar o barco. Sem ninguém para orientar nem censurar, decidiram buscar por conta própria o tal oceano azul. Primeiro passo: descobrir uma bússola. Combinaram dois nortes: “se ainda resta um oceano azul no mercado corporativo de TI , o caminho para ele passa por abstrações e serviços.”
Os caras não tinham um Wardley — tristes tempos. Se tivessem, apontariam para aquele enorme vão entre os trocentos sistemas e os servidores: “o que é que a gente pode colocar aqui?”
A turma do funil
Se a gente tá aqui por causa do VSM…
… e da cerveja…
Deixa eu terminar: se estamos aqui por causa do VSM, onde ele foi parar? Hoje não merecemos nem aqueles rabiscos!
A história não acabou.
Não, mas das outras vezes a gente tinha um ou outro pitaco de VSM no meio do texto. Hoje não teve nada. Nadinha!?
E sobre o que você acha que ele tá falando?
Ah, sobre mais um processo de M&A que deu com os burros n’água.
N’água vermelha de sangue.
Ah, e tem isso também: ressuscitar a Estratégia do Oceano Azul? Sério?
Uai, era o livro da vez.
Então a história é velha pra chuchu.
Pode ser, mas tá divertida. Gostei da sacada oceano, náufragos, bússola…
Mas falta VSM.
Falta não. Acontece que não precisa ficar apontando toda hora, precisa? Hoje, por exemplo, qual foi o principal sistema em questão?
O Cinco?
Que nada, o Cinco foi para o beleléu. Os dois “maridos” chegaram impondo agenda e cultura.
“Controle obsessivo-compulsivo de custos”.
Hehehe… Isso!
Mas não é o Cinco. É o Quatro. Demorou um pouquinho para chegar ali, mas acho que na próxima parte ele vai mostrar um Sistema 4 que nasceu por pura necessidade.
E falta do que mais fazer… você tá falando dos 3 náufragos, certo?
Sim. E da intenção deles de criar “abstração e serviços” no meio daquele Wardley.
E por falar em Wardley…
Cotação
Existem três tipos de grandes corporações: aquelas que estão prestes a ir à falência, aquelas que já foram e ocultam o fato, e aquelas que estão falidas e que não sabem disso.
A Estratégia do Oceano Azul, De W. Chan Kim e Renée Mauborgne (Campus, 2005).
Wardley Maps, de Simon Wardley (Independente, 2022).
A Cama de Procusto (Objetiva, 2022).