A principal inspiração para o desenho do VSM foi o nosso sistema nervoso central (SNC). Porque ele é o mais complexo sistema conhecido. Uma de suas responsabilidades é a manutenção do nosso equilíbrio. Somos repletos de KPIs, de indicadores-chave: temperatura, frequência cardíaca, pressão arterial etc. Nosso SNC tem um subsistema que funciona para garantir que esses sinais vitais operem de forma coordenada dentro de limites que não comprometam a viabilidade do corpo. É um Centro Regulatório, um mecanismo anti-oscilação que no VSM é chamado de Sistema 2.
Uma organização, como vimos no post anterior, pode ter diversos Sistemas 1. Cada um deles criando e entregando valor para uma parte específica do ambiente. Considere as diversas lojas de um gigante varejista, as agências de um banco, os times no Spotify ou as três filiais do Empório da Vovó, por exemplo. Como a organização garante que essas operações estejam trabalhando de forma coesa e coordenada?
Talvez agora o termo centro regulatório faça mais sentido. A alta gestão1, ainda escondida atrás do biombo meta-sistema, cria uma série de regras para garantir padronização e integração das operações. Assim a gestão amplifica a sua variedade e instala mecanismos que atenuam a variedade que vem das operações. A esse conjunto de padrões e regras2 damos o nome Sistema 2. Ele é representado no diagrama VSM na forma de triângulos. Cada Sistema 1 tem a sua instância. Porque é necessário acompanhar em tempo real o comportamento das operações e detectar eventuais oscilações em sinais vitais. Essas oscilações são comunicadas ladeira acima para que a alta gestão, se necessário for, tome alguma providência.
Integração e Padronização
O Sistema 2 é constantemente apresentado como um serviço prestado à alta gestão. É ele que responde por parte importante do balanceamento de variedade que caracteriza um sistema viável. No entanto, o seu desenho não pode, como acontece com frequência, se basear no perfil dos gestores. Um Sistema 2 não pode ser detalhista e restritivo porque o chefe é chato nem frouxo e liberal porque o gerente é gente boa. Não se desenha uma organização a partir das pessoas que eventualmente desempenharão alguma função nela. Se a intenção é desenhar uma organização viável, isso não se faz.
São as demandas que vêm que fora - dos clientes, principalmente, mas também de outras partes interessadas - que orientam a estruturação dos Sistemas 1. Portanto, essas mesmas demandas têm o que nos ensinar sobre o desenho do nosso Centro Regulatório, o Sistema 2.
Existem organizações onde os Sistemas 1 mal se conhecem. Cada um deles é um time trabalhando para clientes diferentes. Eles não compartilham plataforma, ferramentas, informações — quase nada. Estamos no quadrante da Diversificação. É o cenário em que o Sistema 2 é bem leve. Não porque alguém quis mas porque aquele negócio não demanda muita integração e não ganharia nada ou quase nada com a padronização.
O exato oposto, o quadrante da Unificação, é bem ilustrado por agências bancárias. As necessidades de integração e padronização são totais. O que faz com que o Sistema 2 de um banco seja grande, complicado e invariavelmente neurótico. O que é curioso, porque neste mesmo quadrante figuram modelos de negócio mais recentes (modernos?), como o de transporte de passageiros por aplicativos, por exemplo. A integração é total — estamos falando de uma plataforma — e há critérios que sugerem certo nível de padronização (dos veículos, qualidade do serviço, remuneração, penalidades etc.) Por que o curioso acima? Oras, o que mais compartilham as agências bancárias e os motoristas de aplicativos?
Em Coordenação temos organizações que demandam integração - compartilham produtos, clientes ou fornecedores, por exemplo - e pouca ou nenhuma padronização. Pense em concessionárias de veículos ou oficinas autorizadas de assistência técnica, por exemplo.
Por último, há o quadrante da Replicação. São negócios que demandam muita padronização e pouca ou nenhuma integração. Franquias são um exemplo óbvio. Os manuais do franqueado são calhamaços que representam uma parte importante do Sistema 2 desse tipo de negócio.
A Estabilidade Requerida
O Sistema 2 pode (deve?) ser entendido como a parte mais automática (ou automatizável) de uma organização. Ele é um contrato firmado entre a alta gestão e a turma que vai criar e distribuir valor.
Quando falamos sobre arquitetura de uma forma geral ou do design organizacional de maneira específica, uma das primeiras preocupações é com a separação daquilo que muda muito da parte mais estável. O Sistema 2 é um mecanismo anti-oscilatório. Não faz sentido que ele próprio oscile ou mude todo dia. Um Sistema 2 instável faz com que toda a organização balance perigosamente. Nos noticiários do dia a dia, sempre aparece alguém reclamando da instabilidade dos marcos regulatórios tupiniquins3.
Repare: não importa o nível da recursão nem o porte do sistema.
Sistemas grandes têm as mesmas propriedades dos sistemas pequenos; Eles funcionam e falham exatamente da mesma maneira.
-Patrick Hoverstadt4
Outro sintoma inequívoco de que as coisas não vão nada bem é o envolvimento frequente da alta gestão na resolução de conflitos entre Sistemas 1. Parte disso é resolvido com um Sistema 2 bem desenhado. A outra parte a gente vê no próximo post. Inté!
Cotação
Analisando da perspectiva atual, quando o sistema nervoso entrou em cena, permitiu que organismos multicelulares complexos administrassem melhor a homeostase no organismo como um todo e, assim, ensejou expansões físicas e funcionais desses organismos. Surgiu como funcionário do resto do organismo — do corpo, para ser mais preciso —, e não o contrário. É bem possível que, em certa medida, ele continue funcionário.
O termo alta gestão incomoda. Nos originais de Stafford Beer fica um pouquinho pior: senior management. Pior em que sentido? Sei lá, nas impressões que passa: gente velha, sabichões numa torre de marfim, privilegiados… Nenhum desses entendimentos é adequado. Na falta de palavra melhor, fiquei com o alta porque em diagramas VSM esses sistemas ficam na parte de cima mesmo. Vish, ficou ainda pior …
Encarnando o instrutor chato que dá muita importância para definições, preciso alertar que falar em “padrões e regras” é redundante. Vamos lá?
TUDO o que define QUALQUER aspecto de um negócio é uma regra (de negócio).
Portanto, podemos entender que tudo o que sai do Sistema 2 é regra. Daí o termo Centro Regulador.
Inaceitável mesmo é entender e, pior ainda, ensinar que “regras de negócio são componentes de um sistema de informação organizacional cuja importância tem sido reconhecida nos últimos anos”. Piora: [Regras de negócio] “representam um importante conceito dentro do processo de definição de requisitos para sistemas de informação e devem ser vistas como uma declaração genérica sobre a organização”.
(Modelagem da Organização - Guerrini et al - Bookman, 2014).
Destaco o tema porque, sei lá, ele deve responder por 77% dos problemas em projetos de sistemas de informação. Então, por favor: regra de negócio não é um entregável (sic) inventado pela TI, não existe só por causa de projetos e respectivos requisitos e não faz nenhum sentido fora de contexto.
Longe de mim subscrever esse tipo de chororô, ainda mais quando o reclamante é pouco transparente em relação aos seus propósitos.
A Estranha Ordem das Coisas: As origens biológicas dos sentimentos e da cultura (Companhia das Letras, 2018).