Foi um dos raríssimos fidbeques de minhas raras leitoras e assinantes: “Ninguém está falando sobre isso”. O isso é o VSM, o Modelo do Sistema Viável, tema que venho puxando — ou empurrando — desde fevereiro. Outro amigo disse: “não vejo quase nada acontecendo do que você fala”. Eu evitei esticar as conversas. Para não ouvir um “mude de assunto!”
Pouco Caso
O VSM sofre com esse pouco caso desde que foi apresentado ao mundo, há mais de 50 anos. Os contras destacados pelo perigoso1 ChatGPT no post anterior não explicam, por si só, o desprezo. Que é bem maior no lado de cá do oceano Atlântico2.
Eu gostaria de compartilhar o otimismo, em relação ao reconhecimento do VSM, que Angela Espinosa e Martin Pfiffner expressam em seus últimos trabalhos3. Ambos escreveram que Beer estava cinquenta anos adiantado em suas preocupações e soluções. Disso eu não tenho dúvidas. Mas não vejo sinais de que Pfiffner acertou quando cravou4:
Regra geral, são necessários 50 a 60 anos para que inovações impactantes e seminais se espalhem ao ponto de criarem benefícios reais na economia e na sociedade. Este livro trata desse tipo de inovação básica, primeiro porque precisamos dela com urgência e, segundo, porque está disponível, esperando para ser usada, após 50 anos de testes práticos e desenvolvimento tecnológico.
Há quase 50 anos, o acadêmico e gestor britânico Stafford Beer apresentou a sua solução para um problema que, na opinião da maioria das pessoas, ainda não existia. Embora a tecnologia já existisse de forma rudimentar, estava longe de estar madura. Beer estava muito à frente de seu tempo porque a questão era como fazer organizações complexas funcionarem.
Eu só conhecia o VSM de nome quando, há cerca de dez anos, me deparei com o artigo Systems Thinking for Business Analysts Leading Change, de Emma Langman5. Langman sintetiza muito bem as abordagens e ferramentas sistêmicas que fariam diferença nas mãos de analistas de negócios. Sobre o VSM, ela não deixou dúvidas:
[É] uma peça particularmente poderosa da caixa de ferramentas do Pensamento Sistêmico.
A autora admite que “à primeira vista, o VSM é um modelo horrivelmente complicado e deslocado (off putting). Entretanto, com pouca prática…”
Destaco o pouca porque, bem, não é tão pouca prática assim que precisamos para compreender bem o modelo.
Em um trabalho que usa Beer de uma maneira bem diferente6, sem VSM, David Komlos e David Benjamin cometeram:
[..] entramos num mundo de cientistas de aparência austera e barbas compridas, cujos escritos eram totalmente inacessíveis aos meros mortais, quase escritos em código, usando o que parecia ser um léxico secreto.
Totalmente inacessíveis? Beer nunca escondeu a necessidade de uma linguagem diferente para lidar com a complexidade. Talvez o VSM seja totalmente inacessível para o cara que só tem um canvas-martelo7. Mas, tudo bem, estou apenas tentando mostrar o tipo de impressão causado por Beer e seu VSM.
Tive a chance de trocar alguns emails com Jurgen Appelo, autor de Management 3.0 e outros livros. Perguntei se ele conhecia o VSM:
Yes, I read the book. I think it's theoretically interesting and practically useless. :-)
Perguntei qual livro ele tinha lido. Ele não se lembrava. Ou seja, pelo visto, nem foi tão interessante assim.
Alguma Experiência
O VSM me pegou ali pelos idos de 2014 porque ofereceu um contraponto sério e robusto ao entendimento do que seria a Arquitetura de Negócios. As interpretações que vinham de TOGAF, derivados e assemelhados eram assustadoras8. Eu oferecia uma singela oficina de Arquitetura de Negócios. Coloquei um puxadinho de VSM lá no finalzinho do último dia. Coisa de trainee. Era para aprender, não para ensinar.
Algum tempo depois, eu lancei um evento um pouco mais ambicioso no uso do VSM: Design de Negócios VIÁVEIS. O kit tinha vinte e poucas ferramentas. Entre um JTBD e uma jornada de cliente, apareciam coisas estranhas como Balanço Cibernético, Balancete Cibernético e coisa e tal. Esses eventos me levaram dos Pampas até Manaus, com escalas em grandes bancos e pequenas furadas. Esses eventos, de alguma maneira, confirmaram o Taleb9:
A macrobaboseira é mais fácil de pôr em prática do que a microbaboseira.
A estratégia mineira — comer pelas beiradas — não funciona para o VSM. Essa descoberta reduziu ainda mais as minhas chances de aplicação. Fechei as oficinas — não fazia sentido concorrer com tantos canvases, inceptions e stand-ups — e comecei a procurar oportunidades pontuais de aplicação. Foram raras as vezes em que coloquei o VSM no discurso de “venda”. Como parece acontecer em tudo o que gira em torno do modelo, as reações eram 8 ou 80: Ou eu espantava a freguesia ou o VSM ganhava novos fãs. O espanto era mais comum.
O VSM nos dá uma maneira totalmente diferente de enxergar e entender organizações. Uma vez aprendido esse jeito de olhar, não dá pra desaprender. Você passa a usar o modelo automaticamente. Certa vez, numa loja de rua do Magazine Luiza10, comentei com um vendedor: “essa concorrência brutal entre os elementos operacionais do Sistema 1 ainda vai ferrar a viabilidade da empresa”. Ele não chamou os seguranças.
Muita Teimosia
Não me incomoda o fato do VSM não ser nada popular. Patrick Hoverstadt foi certeiro11:
[A] ciência da organização está profundamente enraizada numa visão sistêmica do mundo, e uma visão sistêmica é bastante diferente de perspectivas baseadas numa tradição linear e reducionista. É claro que isso não explica tudo – o que explica? Mas fornece alguns insights surpreendentes para alguns enigmas de longa data para as organizações. Talvez, a enorme diferença da visão sistêmica seja o que a confinou a um ponto de vista minoritário por tanto tempo.
As diversas crises que vivemos e testemunhamos, de perto ou de longe, são crises em nossas organizações. Nenhuma dessas entidades — sejam elas públicas ou privadas, grandes ou pequenas, formais ou não — está isenta ou imune. Porque elas foram desenhadas ou se desenharam para um mundo que não existe mais.
Tanto o conhecimento quanto a experiência parecem ter se esgotado. Estamos em uma situação experimental.
É exatamente essa consciência, esse entendimento da nossa era, que distancia o VSM das demais propostas. E é essa humildade — o reconhecimento de que o grande desafio é (re)aprender a aprender — que dá robustez e flexibilidade ao modelo. Por essas e outras, seguirei teimando.
Cotação
Você nunca muda as coisas combatendo a realidade existente. Para mudar algo, construa um modelo que torne o atual obsoleto.
Porque é mentiroso pra caramba. O que me faz pensar: quanto estrago pode fazer uma ferramenta beócia e arrogante nas mãos de gente beócia e arrogante?
Apesar da relevância dos causos ocorridos no Chile e Canadá.
Sustainable Self-Governance in Business and Society: The Viable System Model in Action - Angela Espinosa (Routledge, 2023). Em 18/04/24 não havia nenhuma avaliação deste livro no Goodreads, o que explica um pouquinho do meu ceticismo em relação ao otimismo expresso por Espinosa e Pfiffner.
The Neurology of Business: Implementing the Viable System Model - Martin Pfiffner (Springer, 2022).
Ibid., p. v.
Disponível no bom e ignorado (pelo menos pela comunidade BA daqui) Business Analysis and Leadership: Influencing Change, organizado e editado por Penny Pullan e James Archer (Kogan Page, 2013).
Cracking Complexity: The Breakthrough Formula for Solving Just About Anything Fast, David Komlos e David Benjamin (Nicholas Brealey, 2019).
Para quem só sabe usar martelo, todo problema é um prego.
Tipo: a arquitetura do negócio era 1/4 do todo. As arquiteturas de TI, de Informação e de Aplicações completavam o desenho. Ou seja, TI tinha 3/4 do bagulho. E eu nunca deixo de admirar a perspicácia, o destemor e o oportunismo da patota de TI.
A Cama de Procusto Aforismos filosóficos e práticos, de Nassim Nicholas Taleb (Objetiva, 2022).
Só tomo a liberdade de contar o caso porque não se trata de um cliente. Eu era o cliente. E o vendedor via o site da própria Magalu como um concorrente mais detestável que Casas Bahia, Ponto Frio e Americanas.
Brain of the Firm - Second Edition (Wiley, 1981 / 1972). Página 14.